Memórias que não estão aqui
- palavrasbrutas
- 20 de mar.
- 7 min de leitura

Enquanto eu via os dedos batendo velozes nas teclas, o som desaparecia. Via cada uma das bocas naquele quarto, exceto a minha, se mexendo rápido em empolgação não contida. Enquanto o mundo digital era esquadrinhado, aquele quarto parecia tomar novas formas diante de mim.
Eles vasculharam gavetas e reviraram arquivos mortos, subindo em sótãos obscuros e porões úmidos. Eu via tudo isso como um desenho em preto e branco, sem som, mas sensorial acima de tudo.
— Se eu fosse você ia na cozinha e pegava uma cerveja. — Rafael me tirou do transe. — Isso deve demorar.
Respirei fundo. Claro que não ia dar certo, tudo tinha se perdido para sempre. Eu sempre soube disso e era um erro me enganar.
— Me enganei. — Era o Rafael de novo, agora me olhando com a cabeça caída de lado, soltando um sorriso sacana. — Pega a cerveja e pega a manete. Vou instalar o emulador aqui. Vamos jogar essa porra!
Outubro de 1993
“Olha, você precisa esperar a hora certa… agora! Isso! De novo. Muito bem. Agora… ah, você perdeu. Deixa eu tentar aqui.”
“Vovô, esse jogo é seu?”
“Não, não é não. Eu fiz ele, mas a compania comprou ele de mim. Me pagou bem por ele e talvez comprem meu próximo jogo.”
“Mas se você fez o jogo não é seu, vovô?”
“Não, ele só era meu antes de vender, mas quer saber um segredo? Agora você é dono dele. Pelo menos desse aqui. Esse jogo é seu, pequeno. Todo seu.”
Meu avô morreu. Nunca mais fez nenhum jogo depois daquele. Morreu pouco depois dessa viagem, na verdade. Morreu sozinho no Japão, pelo que eu sei. Meu pai só tinha dinheiro para uma passagem, mas não queria que minha mãe viajasse sozinha. Ele foi ao velório. Não soube trazer nada do meu avô para mim ou para minha mãe. Anos depois minha mãe voltou lá, remexeu nas coisas dele. Já era tarde, estava quase tudo perdido, entre fotos estragadas e papeis comidos de traça. Meu jogo estragou, de forma boba, como crianças estragam. Consegui ligar para minha mãe do telefone, de madrugada, por causa do fuso.
“Mãe… encontrou?
“Não filho.”
A linha ficou muda. Pelo menos me lembro assim.
A memória tem uma coisa engraçada, pega a gente de surpresa muitas vezes, nos enganando. Minha mãe se separou do meu pai em 2015. Não preciso dizer o motivo, não importa também se não souberem.
A memória nos confunde, mas eu sempre fui bom com datas. Eu tinha oito anos em 1993 quando meu avô veio ao Brasil trazendo um cartucho de seu primeiro e único jogo. Eu tinha nove anos em 1993 quando me disseram que ele morreu. Passei meu aniversário, entre essas duas datas, jogando o jogo dele na nossa velha televisão de tubo e usando um Prosystem, que meu avô mesmo havia comprado para mim.
Ele disse que comprou quando chegou só pra que eu pudesse testar o brinquedo com ele. A coisa era lançamento na época e eu não faço ideia como meu avô, que não falava nada de português, conseguiu descobrir que o clone existia e conseguiu comprar antes que a Nintendo proibisse sua produção no Brasil. Sei que ele comprou na 25 de Março e foi lá mesmo que eu conheci o Rafael.
Além de ter uma lojinha por lá, Rafael era Youtuber, fazia reviews de aparelhos importados da China e falava com uma molecada sobre consoles portáteis de emulação. Pirataria, em bons termos. Eu também faço vídeos pra internet, quem é que não faz hoje em dia. Mas ninguém vê as coisas que eu publico. Eu sou escritor, e pior, escritor de poesia. Mas acho que, embora jogos de videogame sejam muito mais cool do que versos no estilo de Olavo Bilac, foi por causa dessa relação com o público nichado que eu e Rafael nos entendemos tão bem.
Quando eu o vi pela primeira vez, estava procurando na loja dele, entre os cartuchos velhos e usados. Quando ele me perguntou o que eu queria, eu disse que estava procurando por uma memória de infância.
— Super Mario? Legend of Zelda? — Ele me perguntou.
Eu expliquei que não, disse o nome do jogo do meu avô. Ele não conhecia, disse que iria olhar com os fornecedores. Pediu que eu voltasse dali a tantos dias. Eu voltei, mas ele não encontrou nada. Voltei de novo. E outra vez. Acabei ficando amigo do Rafael. Dei um dos meus livros para ele e ele me pediu que acompanhasse seu canal. O tempo começou a passar, mas eu não disse que o jogo tinha sido feito pelo meu avô.
Na verdade, depois que ele morreu e eu perdi a minha cópia, nunca mais disse a ninguém que meu avô havia feito um jogo. Guardei aquilo para mim. Era meu segredo com ele, ninguém além de quem estava lá na época sabia disso. Eu nem mesmo tinha mais vontade de jogar aquele jogo. Guardei ele na memória, e na memória ele estava. Foi só quando minha mãe morreu que tudo mudou pra mim. Foi minha vez de mexer nas coisas dela. Achei suas agendas, minha mãe era louca com agendas. Sempre dizia ser péssima de memória, então escrevia tudo, tudo mesmo. Organizava todo o seu dia.
Lendo suas agendas, pude ver muito sobre ela que não sabia, e chorei, chorei como se voltasse a ser criança, principalmente por descobrir quantas menções haviam, todos os anos, dela tentando encontrar o jogo. O jogo do meu avô, pai dela, o meu jogo.
O jogo que o Rafael não encontrava de jeito nenhum. Quando voltei ele estava uma fera. Tinha sido cancelado na internet, naquela rede maldita do bilionário, por que ele defendia a pirataria. Eu nunca tive uma posição, mas claro que me falavam muito de pirataria. Eu tinha outros amigos escritores e a maior parte deles odiava a pirataria. Eu nunca tinha ganhado o bastante com o que escrevia pra isso me preocupar. Eu era invisível até para a pirataria. E não sabia dizer se isso era realmente uma vantagem. No caso do Rafael, alguém tinha até marcado a agência de advocacia da multinacional de jogos pra assustar ele. Ele restringiu o perfil e começou a reclamar na loja em voz alta. Eu tinha acabado de entrar.
Ele me recebeu bem e perguntou se eu queria sair para tomar uma cerveja.
— Como estão as coisas? — Ele perguntou?
— Começo na editora na segunda.
— Mas já?
Balancei a cabeça que sim.
— Então é sério? Vai se mudar mesmo?
Eu havia recebido uma proposta de trabalho, um colega da faculdade trabalhava em uma editora em Belo Horizonte e apresentou meu currículo lá. Seria revisor e quem sabe, um dia poderia ter uma série publicada.
— Ainda não consigo aceitar que não achei aquele jogo para você.
— Deixa isso pra lá, já aceitei que é caso perdido.
Rafael deu o longo gole na garrafa de cerveja.
— Não gosto de deixar pontas soltas. Mas se eu encontrar aqui eu mando pra você, só me enviar o endereço em que você vai ficar.
Concordei.
— Mas olha… — Eu disse, titubeando — talvez seja melhor assim. Não mexer em coisas que pertencem aos mortos.
— Como assim, mortos?
Da mesma forma como foi fácil esconder de todos a história do jogo do meu avô, foi fácil contar para o Rafael a história inteira.
— Mas que porra hein cara! Se tivesse me contado essa história meses atrás eu teria agido completamente diferente com esse jogo.
Rafael ficou em silêncio por um instante, virando a garrafa na mão. Eu olhei para a mesa, para os anéis úmidos que os copos deixavam no tampo de madeira.
— Eu não preciso achar um cartucho pra você. Só preciso achar o jogo.
Rafael falava sobre ROMs e preservação digital, mas eu mal ouvia. Em algum lugar da minha cabeça, eu ainda segurava aquele cartucho, ainda via meu avô rindo ao me entregar o jogo. Agora, tudo isso parecia tão distante quanto um sonho ruim.
— Dá pra achar isso na internet? — Eu perguntei.
— Amigo, dá pra se achar tudo na internet.
E foi assim que chegamos ao início, Rafael me levou até uma velha Lan House. Nem sabia que Lan houses ainda existiam. O cheiro de tabaco impregnava o ar, carregando o mesmo mal cheiro que o casaco do meu avô. Cheiro de fumaça trancada. Era lá que os amigos do Rafael faziam HDs e Pendrives carregados de jogos e vendiam online. Ele nunca me disse que era santo.
— E você também não — Ele me disse — Vai escrever sobre isso, não vai?
A tela do monitor começava a se iluminar com a logo do emulador de Super Nintendo.
— Eu escrevo poesia — respondi.
Já tinha tentado escrever prosa, já tinha tentado escrever sobre aquilo antes. Mas as palavras sempre saíam tortas, como uma fita VHS rebobinada demais, cheia de chiados e cortes bruscos. Talvez algumas coisas não pudessem ser ditas, só vividas.
— Vai abrir uma exceção. — Rafael disse, então me deu um tapinha no ombro. — Vou dar Start. Presta atenção. Vamo ver o que seu avô fez.
Era como se eu estivesse de novo em 1993. Mesmo diante de uma tela LCD, mesmo com um controle falsificado de Playsation2 nas mãos, mesmo naquela Lan House que teimava em não desaparecer, contra todas as expectativas. Era como se eu estivesse de novo em 1993...
Senti nas mãos o cartucho era um pouco áspero nas laterais, com a etiqueta já desbotada. Meu avô passou a mão pela barba rala, como sempre fazia antes de dizer algo importante. "Agora você é dono dele", ele disse, com aquele tom grave que fazia tudo soar definitivo. Ao fundo, o chiado da TV de tubo misturava-se com o som eletrônico da música do jogo.
As memórias nos traem e, naquelas condições, o jogo não era exatamente o jogo que meu avô e eu jogamos. Mas foi o bastante, e eu chorei. Chorei muito.
E como podem imaginar, é claro que eu escrevi sobre isso.
Rafael Assis

Escritor, poeta e resenhista. Criador do blog "Um de Tudo" como um arquivo, um portfólio, um local de posts difusos buscando ser uma mapa para as diversas produções que tomam forma quando encontra-se com o papel.
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